Tens noventa anos. És velha, dolorida.
Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito.
Não sabes ler, tens as mãos grossas e deformadas,
os pés encortiçados.
Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha,
albufeiras de água.
Viste nascer o sol todos os dias.
De todo o pão que amassaste se faria um banquete Universal.
Criaste pessoas e gado, meteste os bácaros na tua própria cama
quando o frio ameaçava gelá-los.
Contaste-me histórias de aparições e lobisomens,
velhas questões de família, um crime de morte.
Trave da tua casa, lume da tua lareira -
Sete vezes engravidaste
Sete sete vezes deste à luz.
Estou diante de ti, e não entendo.
Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo.
Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo.
Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era
quando nasceste:
uma interrogação, um mistério inacessível, umas coisas que
não faz parte da tua herança:
quinhentas Palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta,
uma casa de telha-vã e chão de barro.
Aperto a tua mão calosa,
passo a minha mão pela tua face enrijada
e pelos teus cabelos brancos,
partidos pelo peso dos carregos
e continuo a não entender.
Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente.
Por que foi então que te roubaram o mundo?
Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como,
o porquê e o quando se soubesse escolher
das minhas inumeráveis palavras
as que tu pudesses compreender.
Já não vale a pena.
O mundo continuará sem ti - e sem mim...
Não teremos dito um ao outro
o que mais importava.
Não teremos realmente?
Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas,
o mundo que te era devido.
Fico com esta culpa de que me não acusas - e isso ainda é pior.
Mas porquê avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta,
aberta para a noite estrelada e imensa,
para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás,
para o silêncio dos campos e das árvores assombradas,
e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos
e o fogo da tua adolescência nunca perdida:
"O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!".
É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua.
Zé
Dada a beleza e a sensibilidade desta carta dirigida a todas as avós
do mundo inteiro, não poderia, para mim, passar despercebida.
Não podia!...
Um Abraço,
Maria luísa Adães